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sábado, 15 de novembro de 2008

Pré-Publicação - UMA VIDA NORMAL







"Eu nasci com oito meses antes do tempo e sem que nada o fizesse prever. Na manhã do dia 29 de Outubro de 1981, a minha mãe estava a caminho de uma consulta e de um raio X em Coimbra quando lhe rebentaram as águas.
Até aí tudo corria normalmente. Não faziam ideia de que vinha aqui um rebento de soja.
Como nasci de cesariana, acabou por ser a minha madrinha, que conhecia muitos médicos na maternidade, a receber a notícia. Foi a primeira pessoa da família a ver-me e teve a dolorosa tarefa de contar aos meus avós, ao meu pai e à minha mãe.
O que terá pensado cada uma das pessoas da minha família quando soube? Acho que passou pela cabeça de todos que, se calhar, o melhor era eu não ter nascido. É perfeitamente normal. É como quando alguém está em coma e os médicos dizem “quando recuperar, se recuperar, não terá mais do que cinco por cento das capacidades cerebrais”. O que é que se pensa? Que, se calhar, mais vale morrer.
Quando a minha mãe acordou da anestesia, a minha madrinha aproximou-se dela e disse-lhe:
- Clara, o teu filho não é igual aos outros meninos, houve um problema. Se não estiveres preparada para o ver, eu não vou buscá-lo já.
- O que é que se passa com o bebé?
A minha madrinha não conseguiu encontrar palavras para responder àquela pergunta. Foi ao berçário, pegou em mim e perguntou à minha mãe se queria mudar-me a fralda. Eu vinha embrulhado numa manta e, quando me destapou, a minha mãe olhou para mim e – talvez ainda meio anestesiada – o primeiro comentário que fez foi:
- Se fosse na cabeça era pior não era?
Ficou apática, sem conseguir reagir, mas foi a pessoa que melhor encarnou a situação. O que o meu pai sentiu naquele momento e o que pensou sobre tudo o que estava a acontecer permanece até hoje um mistério. Nunca fez um comentário. Mesmo quando a minha mãe o encontrava a chorar, era incapaz de desabafar. Mas também nunca me rejeitou.
O meu avô diz que teve vontade de desaparecer. Durante quatro ou cinco dias, não conseguiu aproximar-se. Na véspera da minha saída da maternidade, ganhou finalmente a coragem e foi ver-me. Conta a minha mãe que durante esses primeiros minutos se manteve calado, sem dizer uma única palavra, sem conseguir olhar para mim, e sem reagir a nenhuma das inúmeras tentativas da minha mãe para quebrar o gelo e o silêncio. Mas o meu avô acabaria por ser a primeira pessoa para quem eu sorri. Conquistei-o irremediavelmente. Nunca mais me largou.
Com o passar dos dias, o desespero e a revolta começaram a esbater-se e a dar lugar ao amor. A minha avó conta que, ao fim da primeira semana, já não me “achava defeito” , que eu era tão lindo que parecia de cera. Não era eu que mudava, mas sim o olhar dos outros.
Na Bissaya Barreto tinha havido, anos antes, uma situação parecida com a minha. Nesse caso, a malformação tinha sido provocada pela talidomida, um princípio activo de um medicamento que, anos antes, era utilizado para combater os enjoos e a ansiedade durante a gravidez. A minha mãe nunca tomou nada. Os meus pais fizeram exames e mais exames, mas nunca se percebeu porque razão eu tinha nascido assim. Durante muito tempo o fantasma da dúvida perseguiu a minha família, sobretudo a minha mãe, que também sofreu com as especulações que se fizeram em torno da gravidez.
Vi-a pela primeira vez numa fotografia tipo passe. Era muito bonita e chamava-se Maria João. A Lili tinha-lhe falado em mim, mas os relatos não eram acompanhados por imagens. Ao ouvir as histórias do rapaz sem mãos e sem pernas que fazia mil coisas, a rapariga simplesmente não acreditava e atribuía-as ao espírito fantasioso da amiga.
Foi no Inverno de 2006 que nos vimos pela primeira vez. Quando ela apareceu na pista de dança, eu já estava quente por causa das minis. Sabia que não ia conseguir dizer nada que pudesse impressioná-la mas, mesmo assim, ia tentar. Aproximei-me dela, ainda sem saber o que dizer ou fazer, mas arrisquei um “tenho pena de não saber dançar”. Naquele segundo ela acreditou em todas as histórias que ouvira. Perguntou-me se eu não estava a divertir-me, mas a conversa ficou por ali. No dia seguinte, tinha um jogo de futebol combinado e quis que a Maria João me visse a jogar sem próteses. Queria mostrar-me o mais possível para que não houvesse surpresas ou equívocos, e ela, que tinha só 20 anos, encarou tudo com uma naturalidade e uma maturidade que até a mim surpreenderam.
Beijámo-nos pela primeira vez numa festa de Carnaval. No fim-de-semana seguinte, pedi-lhe namoro e ela, apesar se estar a dormir, disse que sim. Ela era a tal. Sentíamo-nos tão próximos que a distância parecia agora insignificante. Nem pusemos a hipótese que o namoro não resultasse. A nossa intimidade cresceu depressa sem que a minha diferença fizesse diferença. Tornámo-nos também os melhores amigos, com uma cumplicidade intensa. Entre as minhas idas ao Algarve e as vindas da Maria João à Redinha, começamos a conhecer os amigos um do outro. Ela apresentava-me, e continua a fazê-lo, com a expressão de orgulho de quem apresenta um príncipe encantado. O que outros poderiam pensar quando, por exemplo, estávamos num sítio público sempre lhe passou ao lado, mas mesmo na maior inocência dos apaixonados, sabíamos que a reacção da família dela poderia ser um problema. Fomos adiando o momento.
Para testar a reacção dos pais, aproveitou o facto de eu ir a um programa da TVI para lhes falar de mim. No final do programa, estavam ambos rendidos à força demonstrada por aquele rapaz que lhes parecia um exemplo de vida, e ela nada acrescentou, convencida de que estava tudo bem encaminhado. Tínhamos começado a namorar em Fevereiro. Quando terminou o ano lectivo, os pais foram buscá-la a Faro. A Maria João decidiu contar-lhes.
A notícia caiu como uma bomba e fez mais estragos do que alguma vez poderíamos imaginar. Passámos um Verão de sofrimento. Ao contrário do que supunha, foi o pai que reagiu pior. Encarou o namoro da filha como se a tragédia se tivesse abatido sobre a família. Não aceitava de forma alguma que ela pudesse escolher um homem que, mais tarde ou mais cedo, se tornaria dependente dela.
Foi uma fase muito complicada para todos. Apesar de toda a pressão, a Maria João não dava sinais de fraqueza assim como o pai não cedia aos argumentos da filha apaixonada. À excepção de uma tia mais nova, inicialmente, ninguém da família apoiou. Achavam a história uma aberração. Um dia, à mesa, a avó paterna chegou a perguntar-lhe como é que teria coragem de dormir com um homem sem pernas, ao que a Maria João respondeu que, para aquilo que nós fazíamos, as pernas eram dispensáveis. Tinha medo que ela não aguentasse e desistisse de mim. Entrava em desespero por não poder fazer mais do que dizer-lhe que a amava. Sentia uma revolta que nunca tinha sentido antes e uma vontade enorme de lhes provar que estavam errados, de lhes mostrar que eu também merecia ter ao meu lado alguém que gostasse de mim. Nos piores momentos, pensava em raptá-la e fugir com ela. Mas quando estávamos juntos ao fim-de-semana, o movimento da Terra parava e percebíamos que valia a pena lutar pela melhor coisa que nos tinha acontecido.
A resistência tenaz da Maria João começou a dar frutos dois meses depois. Conheci a mãe, Fátima, e demo-nos logo bem. O pai, João, que se recusava a encontrar-se comigo, percebeu que não teria outra saída. Eu estava nervoso, mas tentei ser o mais natural possível. Passadas umas horas, à mesa do jantar, parecíamos amigos de longa data. Ainda hoje, não consigo perceber aquela mudança tão radical, que se operou num ápice. Hoje em dia, brincamos com o passado; temos uma excelente relação.
Por mais que nos tenha feito sofrer, aquele período fortaleceu os nossos laços e dissipou qualquer incerteza. O sonho de um dia ter a minha própria família e de ter filhos passou a ter mais sentido. Não gosto de pensar demasiado no futuro, mas não imagino nenhum futuro sem ela."


PAULO AZEVEDO

1 comentário:

Circe Martins disse...

Meu nome é Circe Martins, sou de Moçambique, sabe, nao sei nem dizer o que achei desta historia, mas se ela for veridica....nao tenho palavras, mas achei a maravilhosa, espectacular, sem igual e muito emocionante.
Parabens